sexta-feira, 17 de abril de 2020

sem título

quando cheguei
o quarto já estava desarrumado
a sala estava quase
eu virei o resto
todo o pó de um arco-íris que nunca veio
já estava no chão
o relógio marcava meia-noite
meia-noite e umas quantas traças nocturnas de verão
que eu não trazia quando entrei
as teias tecidas no canto da cozinha
eram de aranhas que encontrei na despensa
depois de noites inteiras a procurar
e o sótão sem janelas
só tinha a limpidez de uma noite depois da chuva
alguma parte disto
será minha
uma herança de milhões
de genes
perdidos no atlântico
que ainda hoje andarão nas vagas à deriva
um caminho que o vento traçou em ondas
de breu
uma viagem cujo destino não vai a lado nenhum
ou então já lá estou
dorme
dorme
meu menino que a maezinha logo vem
foi lavar os coerinhos à fontinha de belém
e uma toca de cria de lobo ibérico sem escolha
à espera de predador que o valha
sendo comido a pouco e pouco
por animais sem paladar
estes são os dias em que tudo o que agradecemos é pouco
porque uma toca é uma concha onde mora mais alguém
e ainda bem
somos o vento na ponta do dedo molhado pela língua
o norte no céu depois de ver onde cai o sol
somos a espingarda que não dispara porque é um brinquedo que esculpimos em madeira
a noite e o beijo na testa
que no fim do dia espreita com a lua não importa se está nova
somos o princípio e o fim de nós todos porque só há todos com nós
e um dia quando sussurrar no ouvido de alguém
desarruma-me
estarei a mentir
porque desarrumado já estava desde o dia, a noite,
em que junto aos trópicos entrei no quarto pela primeira vez.


Sem comentários: