há lá nome de bebida quente mais poético
do que
café sem princípio?
para mim é um, se faz favor. sem princípio nem fim.
há lá nome de bebida quente mais poético
do que
café sem princípio?
para mim é um, se faz favor. sem princípio nem fim.
chegou por estes dias
um envelope selado com o lacre dos séculos
chegou de mão em mão porque privatizaram os correios
no destinatário lia-se "presente",
no remetente, "futuro".
no interior, uma carta em branco em que faltava apenas escrever uma palavra.
"comunismo".
naufragar.
nave desfaz-se contra fragas.
há-de se fazer um verbo para quando
nas fragas se desfaçam corações.
esta é a última página deste livro
que no horizonte falso acendeu madrugadas
e estrelas
e no fogo consumiu manhãs e noites que nunca foram frias
esta é a última página deste livro
a primeira da minha vida
rasguei-a
ao vento que te agitava os cabelos
e entrava vindo do mar na casa em que não escrevi prefácio
a última página do livro não é a melhor
é a última
sem ela restaria a edição póstuma reunida pelos familiares sobreviventes.
bem sei que a escrita não faz parte da Língua
ainda bem.
escrever ato não escrevo
persisto no acto
não gosto de ser lambido por uma língua morta.
da janela por onde olho
o longe quase me toca a ponta dos dedos
o beijo no ombro
o cheiro da manhã
de maio mesmo aqui
enquanto passa ao longe uma semana
que navega as águas do rio.
quando o futuro é um espinho
que se te crava na garganta
e o presente um peso
que te amarra ao fundo do mar
toda a tua esperança é o passado
e o passado nunca é esperança
é indiferente existirem fronteiras entre pessoas
ou pessoas entre fronteiras
o limiar divide nada
nem da terra aparta o céu o mar o voo das aves
ou os fluídos seminais
que na osmose constante fundem
todos os corpos
na fecundidade do pensamento
na afinal totalidade que as estrelas trazem no bojo
a que demos o nome de humanidade.