segunda-feira, 19 de novembro de 2018

o caminho

talvez tenhamos escolhido o mais acidentado dos trilhos
porque os suaves não tinham sequer início
talvez a lonjura do possível
voe nas asas desse pássaro quase negro
no ardor sob o peito que prende ao diafragma o pulmão
e faz temer o colapso do amor-abismo
de onde todos queremos precipitar-nos
em salto de fé
o mapa não está revelado
mas sabemos que há demasiadas fortificações pelo caminho
assaltá-las-emos de exércitos unidos
derrubando os monarcas de todo o continente um-por-um
e espalhando cactos que, mesmo sem água séculos,
florescerão em jardim.


quinta-feira, 15 de novembro de 2018

sem título

todos os astros do universo
e mais um 
no meu céu nocturno
e uma via láctea inteira ainda por fazer
no caminho.

segunda-feira, 12 de novembro de 2018

epitáfio para um Comunista

nenhuma liturgia é revolucionária
premissas válidas são as que podemos testar
tudo o resto é idealismo e escuridão.

quinta-feira, 18 de outubro de 2018

sem título

por minha própria mão
o fogo no coração dos outros
e nunca entrei na unidade de queimados
aquele problema dos incendiários
que ouvem sirenes e se julgam bombeiros
apesar das nuvens e bulcões que os perseguem
até que o sol não brilhe
eis-me sem a matéria em que assento os pés
eis a tremenda massa ígnea que nos ascende
do estômago à alma
que nos transcende da alma à boca
rasgando os tímpanos
de todas as orquestras do mundo
eis um descanso uma clareira uma vontade
onde os lagos reflectem a verdade




aquele velho problema dos incendiários
não têm imagem nos espelhos
e nem sentem o sabor do sangue

e as flores o espanto
é a verdade que muda quando falas verdade.

terça-feira, 16 de outubro de 2018

quinta-feira, 11 de outubro de 2018

quinta-feira, 6 de setembro de 2018

sem passado se retorna ao passado

eis o ciclo venenoso da serpente que não matámos no ovo
as falsas bandeiras soprando ódio pelo túnel de vento 
construído com os tijolos das nossas escolas e os salários dos professores contratados 
os medos alastrando como uma doença pela pele afora contaminada pelo ar infecto dos esgotos construídos com o cimento dos nossos hospitais
a falta de tudo sentida assim no âmago de quem nunca teve nada
e essa voz que exige o fim da democracia mascarada de fim da corrupção
que anda pelas ruas de mão em mão sem morada fiscal 
mas sempre domiciliada no paraíso fiscal do aldrabão 

eis um veneno que se injecta nas veias da ignorância  
uma passadeira vermelha caminhada por ilusão 
um livro de estante dos destaques do hipermercado 
um imposto demasiado caro para um serviço que só apetece pedir o livro de reclamações
uma escola fechada um hospital com direito de admissão
um teatro igreja universal e um actor de esmola na mão 
uma ciência terraplanada e um doutor de bolsa não será possível agradecemos a sua compreensão
um polícia raivoso na fábrica ocupada e em auto-gestão e detectives brandos a ajudar a esconder as contas do patrão
uma mão na massa enquanto milhões amassam o pão

é nesse pântano que se torna ténue sem que nos apercebamos a luz
e ao contrário do que se passa com as igrejas
os museus iluminam bem mais quando não ardem.

segunda-feira, 3 de setembro de 2018

sem título

talvez eu seja as dez primeiras páginas do livro
que decidiste a custo ler
porque era um clássico
e apenas possas das minhas linhas conhecer os nomes de um ou dois protagonistas
talvez eu seja o orvalho
que se demora nas folhas com o verde da manhã
os fugazes minutos da alvorada da meia-estação
talvez nem os relógios contem o tempo
do presente que trago nos braços e não dou a ninguém

talvez nem te lembres dos olhos semicerrados
ou dos beijos desamparados
talvez a música esteja para acabar
e eu seja aquele fim de noite
meio difuso
meio embriagado
sem manhã

nem por isso um minuto a menos
nem por isso um café por passar
nem que nos fechem o adamastor.

segunda-feira, 27 de agosto de 2018

sem título

escreve um poema sem destinatário
entrega já colhido um coração
transportado a temperatura abaixo de zero

afinal de contas, o órgão nem notará diferença.

faz um filho fictício com o céu e as constelações todas
esconde uma galáxia no armário
dá apenas a epiderme no beijo mais fundo
todo de aço

inoxidável.

sexta-feira, 24 de agosto de 2018

falha astronómica

aquela poeta que te diz 
que o mais importante da poesia 
é falar verdade, não para terceiros
senão para o próprio
e percorres um caminho 
de anos-luz e relâmpagos 
algumas órbitas 
em torno do teu coração 
um pulsar um quasar
uma volta no ar 
um horizonte de eventos que nem a luz deixa escapar
tantas léguas tantas lágrimas tantas verdades
que nunca escolherás a certa.

quarta-feira, 22 de agosto de 2018

quarta-feira, 25 de julho de 2018

quarta-feira, 18 de julho de 2018

falas mansas

tanta palavra trocada
entre mestre e escravo
não vê o escravo
que a paz não é armísticio
é rendição.

quinta-feira, 12 de julho de 2018

faz-me uma pergunta
mas com as mãos em concha
enquanto guardam a água da chuva
ou enquanto fazes o pino
faz-me uma pergunta com a boca
e faz-me um pássaro com as mãos
no ecrã táctil da minha pele.

quarta-feira, 11 de julho de 2018

sem título

chegará o tempo
de ser tudo nosso
caralho
das casas ao pão
bandeiras e palavras não serão alibi
nem justificação
tão culpado é o que lucra
como o que lhe dá a mão.

sexta-feira, 22 de junho de 2018

faz scroll no feed homeopático

é preciso andarmos muito doentes
para procurar tanta cura
em citações de frases-feitas numa linha de montagem
é preciso estar muito só
para procurar tanta
"auto" e tanta "ajuda",
tão sós que não temos quem nos "hetero-ajude"
e nos consolamos com a felicidade de papel dos desconhecidos
que nunca fotografam o que lhes acontece depois da chuva,
tão desalentados que aceitamos como terapia a banalidade
de um placebo inspiracional


é preciso andar muito vazio para ansiar tanto uma vida cheia,

é preciso andar muito triste para procurar tão desesperadamente a felicidade.

segunda-feira, 28 de maio de 2018

atlântico

manda vir
todas essas lágrimas da áfrica americana
numa carta via furacão
para que possamos também nós aqui
chorá-las
até que juntos vençamos o oceano
em uma jangada de revolta.

segunda-feira, 14 de maio de 2018

de como as pessoas se amam

as pessoas amam-se logo ali de pés nus na relva húmida bem no início do verão, amam-se na cama, amam-se no chão. as pessoas amam-se num fio de vontade que serve de cabo de amarra em temporal.
as pessoas amam os amigos de peito à prova de bala. amam-se assim de coração, e sob as estrelas, nuas ou não.

as pessoas amam-se p'ra sempre apaixonadas ou até amanha, camaradas.

as pessoas amam a poesia que lhes escrevem, principalmente se por analfabetos com ganas de vencer a razão. um dedo, uma língua, ou toda uma praia ao pôr-do-sol na palma na mão. as pessoas amam a sagração da primavera ou todas as quatro estações.
de quando em quando as pessoas até amam quem lhes diz não.
amam enquanto o amor as separa e talvez menos quando as une. são assim os humores que nos percorrem por dentro no sangue complexo dos amaldiçoados.
as pessoas amam-se sem intermediários mas precisam deles para receber a primeira carta e sorriem quando amam as letras, principalmente se forem à mão.
as pessoas amam as asas abertas no céu ou a membrana em chamas do inferno porque o purgatório é uma ave engaiolada.

as pessoas amam, acima de tudo, existir em mais do que em si próprias e ser casa de alguém.

tudo isto

é verdade
sou eu que trago a semente
mas só tu verteste essas lágrimas
se quero viver nos poros da tua pele
quando morrer só quero
ir para o céu da tua boca.

terça-feira, 8 de maio de 2018

floripes

não há lendas erradas
para mouras encantadas
um beijo no braço 
uma ferida aberta
desde que do lado do coração
é o caminho mais duro que faz valer a vida
valer as velas na mão
valer a ria e o vento
o frio e as ondas salobras
valer o norte de áfrica 
e uma chama de sacrifício e maldição
acesa na mão.


segunda-feira, 30 de abril de 2018

sem título

não gosto de pensar que todo o tempo é pouco
existe na exacta medida do necessário
desde que esteja no lugar certo
e se usem as palavras inteiras para cada minuto
desde que os desertos sejam atravessados de mãos dadas
e a embarcação seja feita de vontade
da que quero contigo
montar o mesmo cavalo cego.

terça-feira, 24 de abril de 2018

sem título

tenho portões reforçados e muralhas vigiadas
casa roubada trancas à porta
os arqueiros matam à distância a esperança
mesmo a camuflada de paixão
e perfuram com a gravidade toda na ponta das flechas
a mais elaborada armadura
tenho um fosso onde nadam escondidos
os mais temíveis monstros marinhos
certo dia tragaram de uma vez um arco-íris
que avançava intrépido sobre a treva
vinha convencido de bem sucedida conquista
tenho mantimentos para dez mil anos de cerco
e alcatrão suficiente para banhar em chamas
o maior exército do mundo
todo o meu castro pulsa entre a inexistência e a miragem
é um forte à prova de catapulta.

e um cavalo de tróia bastou.
não aprendi nada com a história.

quinta-feira, 19 de abril de 2018

sem título

podes disfarçar com amor o teu desprezo,
do verdadeiro e do contrafeito,
mas não de contrabando.
isso de saltar as fronteiras da tua pele
é aventura em excesso para esse miocárdio
movido a energia eólica
porque no peito só te sopra vento.
e nem sequer uma tempestade
resta aquela massa desértica
de quem não se abandona porque não pode voar.

sexta-feira, 6 de abril de 2018

S.

tenho uma irmã gémea que nasceu com quatro anos de diferença.

pode separar-nos meio globo
teremos sempre as mãos dadas
não há fronteiras no nosso abraço
mesmo que pulsem o mesmo sangue dois corações.

quinta-feira, 29 de março de 2018

versos pérolas

gosto dos versos enlameados
com um odor humano animal 
antes de perfumes e colónias
um sangue suor lágrimas 
pelos poros e pelas estrofes

assim de dignidade inconfundível 
como a de umas mãos robustas 
ou de uma pele curtida
gosto de versos pérolas

a porcos.

sábado, 24 de março de 2018

húmus

é à sombra ancestral
à raíz de todo o mundo
ao musgo primordial
à beleza amazónica

que nos levam todos os caudais

de regresso à morte

ao descanso orgânico do húmus.

quarta-feira, 7 de março de 2018

sem título

há maçãs
laranjas
clementinas
a bem da verdade, hesitei em escrever que também havia batatas. talvez porque batata caia fora do leque das frutas e entre já no ramo dos tubérculos ou então pelo simples facto de não ser tão bonito o nome batata quanto é o nome de clementina. veja-se que não faltam mulheres com o nome do segundo e não conheço nenhuma que dê pelo primeiro. seja como for, também havia batata.
estas viagens vão vendo passar as estações do ano, que tanto espelham o mondego como o perturbam ao expoente da agitação possível para um fetch tão pequeno. desde a corrida laminar de moléculas deslizantes à torrente que até os peixes leva, vem um ano sobre outro ano.
a livraria sempre assente na estante do vale lamenta ocupar apenas um troço do itinerário. mas as lombadas litológicas dos livros são imagem permanente e talvez até motivo para as recorrentes linhas. por esse rio acima, também por esse rio abaixo, as estações correm e deixam-me sempre a sensação de que a chuva sobre a água é como uma lavagem à alma.

quinta-feira, 1 de março de 2018

do restelo para o mundo

transpusemos a ombreira
da humanidade
numa fuga vertiginosa
para o que os velhos
(é sempre assim)
vêem como abismo.

é nessa profundidade
contudo
que as candeias se acendem
e os caminhos
ei-los: a época produz os homens necessários.

somos uma massa universal
feita de milhões de passados
somos uma colmeia de gigantes
uma montanha de corações nas mãos
numa nave levada por todos os braços
vogando sobre o dorso do cosmos
rumo ao sol do futuro.

quinta-feira, 22 de fevereiro de 2018

sem título

vim ao mundo montado numa semente de tempestades
como todos os outros
e foi sempre a chuva no rosto que se confundiu com lágrimas
quis cavalgar o tempo como a crista da duna
de um deserto sem fim
e as cidades apareceram no horizonte
todas habitadas de estações do ano
e pequenas amplitudes térmicas

estávamos nus nesse sonho de humanidade
e sorvíamos dos lábios uns dos outros
as gotas de timidez enquanto sorríamos levemente
as florestas tropicais cobriam nossos corpos de lama
e os rios lavavam as almas ardentes no seu caudal

a bruma envolve a lâmina por sobre a qual caminhamos
afiada sob os pés descalços
sem perdão e em sangue
não há forma de caminhar sem deixar rasto
e os batedores pouco treinados podem encontrar-nos
camuflados uns entre os outros
em pilhas de gente viva que finge como batráquios
a morte.

sem título

em quanto mar
em quantas léguas de tempestade
persiste intacta esta embarcação

é por ter alma de recife
que vivo submerso
e morro afogado
a cada inspiração.

domingo, 18 de fevereiro de 2018

sem título

este é o meu solo
marejado pela bruma 
salgado pelo suão
não sou árvore e - certamente
fora do reino 
seria erva daninha -
mas é este o substrato das minhas raízes
braços ao alto coração de seiva
o mar constante.

quarta-feira, 14 de fevereiro de 2018

estética do domínio

quando Jenner descobriu o poder de inocular organismos com agentes infecciosos enfraquecidos estava a salvar a humanidade de pragas desnecessárias. o capitalismo aprendeu os princípios da vacina: hoje já não nos esconde a verdade, faz dela filmes de sucesso, êxitos de bilheteira onde pagamos para aprender como funciona a bolsa de valores, o mercado financeiro, a exploração dos diamantes em África, como funcionam as farmacêuticas, as empresas de tabaco, enquanto comemos umas pipocas.

ao jantar, com sorte ainda vemos umas bombas a destruir uma escola ou duas no noticiário.

o agente infeccioso, enfraquecido - porque é diferente aprender sobre diamantes de sangue a comer pipocas do que a levar chicotadas; porque é diferente ver uma criança a morrer de fome do que não ter como alimentar um filho -, entra-nos pelo sangue adentro.

doses homeopáticas de verdade. eis a vacina contra a acção, a imunização da revolta e a estetização da miséria.

terça-feira, 13 de fevereiro de 2018

círculo

estes versos não fazem falta nenhuma,
não têm destino de ser cimento das almas partidas 
nem podem ser fogo de artifício a abrir-se em flores
na alegria de uma noite de verão,
são o que não falta 
apesar de faltar verdade 
e serem verdade 
as letras 
não destes, mas de todos os versos do mundo 
que são verdade
por não fazerem falta. 

quarta-feira, 31 de janeiro de 2018

pergunto

esta ferida fado
aberta
quantas cicatrizes deixará
na vida de um povo
um dia que a veja com os olhos do futuro.

terça-feira, 16 de janeiro de 2018

triunfo

tem o seu quê de injustiça 
que a sério mesmo a sério 

quem leva os murros no estômago
seja quase sempre

quem o tem vazio.


terça-feira, 9 de janeiro de 2018

chegada

eis-nos à chegada
do fim do cansaço
para trás a inesquecível estrada
as feridas da viagem fecham capítulos.
o pano húmido nos lábios
em que florescem rubras
as peónias
recompõe-me a coragem e a doçura.

quando a corrente puxa a embarcação e tu estás já no cais,
solta amarras.

terça-feira, 2 de janeiro de 2018

maresia

desaconselha-se magia sem prescrição médica
e o diagnóstico correcto
os mares nunca respeitarão isso enquanto a lua
nos der de mão beijada as marés
e o pico do inverno se elevar sobre as nuvens
explodindo em labaredas nos corações de mãos dadas.

os tripulantes dos navios no horizonte
ao longe verão faróis
as fogueiras dos meus olhos.