quinta-feira, 31 de dezembro de 2020

pequeno adágio

escuta a idade
ouve os silvos e o silêncio 
e tudo o que existia já quando nasceste
escuta a idade
primeiro 
a dos outros
depois a tua. 

terça-feira, 22 de dezembro de 2020

acesa

levo justamente à ponta da língua
a polpa do meu dedo
e inundo-me no sabor do teu dilúvio. 

sábado, 12 de dezembro de 2020

sem título

às vezes parece que dou uns passos em volta
da minha vida 
como quem contempla a distância segura
uma sepultura
onde ninguém deixou flores. 

quarta-feira, 2 de dezembro de 2020

sem título

sorves o ar que eu ia respirar
as nossas mãos, arrepiando os lençóis, flores a abrir ao contrário uma na outra. 

sábado, 14 de novembro de 2020

pra cima de poeta

é um reino vazio
um olimpo que ninguém narrou
e nós, cá de baixo, com sorte, deitamos-lhes uns dinheiros no chapéu
o céu sobre Berlim tem anjos
o chão do mundo tem poetas
que ascendem crepitando nas chamas das palavras
e acendem archotes no peito dos mortais.

terça-feira, 3 de novembro de 2020

sem título

o meu sangue, orquídea negra, a espalhar-se
de raizes aéreas rompendo a floresta
estendendo apenas as saudades à casca da árvore
de onde brotara
o meu sangue como um fantasma 
habitando o futuro e todo o mundo aplaudindo de pé
a miragem de um oásis
como se fosse um milagre estar vivo



no deserto.

terça-feira, 6 de outubro de 2020

sábado, 3 de outubro de 2020

sem fim

de quanto em quanto vento
vem o sal do teu sul
na minha língua o teu mediterrâneo 
e o teu planalto de oliveira ainda ancestral 
por quantos suões espero 
até ao mergulho cutâneo 
até ao astro final. 

segunda-feira, 14 de setembro de 2020

porque voas

as folhas do outono não estalam sob ti
e a maré só tímida vem beijar-te a pele no fim do verão
ao longe, bem ao longe, semicerro os olhos e lembro-me do teu caminhar de costas nuas rumo à porta.
a gente nunca sabe o que é para sempre. 

quarta-feira, 9 de setembro de 2020

sem título

nunca só um momento
tão breve tempo
de rio
encheria um mar
não fora estes olhos
terem visto tamanha precipitação. 

segunda-feira, 31 de agosto de 2020

sem título

eu
se fosse poeta 
o que mais gostava era de morrer
nunca um poeta é tão lido como no dia 
de sua morte. 

terça-feira, 25 de agosto de 2020

versos do tempo das lâmpadas incandescentes

é de casa da Rita, pode chamá-la, por favor?

fazia calor e ainda era por causa do buraco do ozono, esfolávamo-nos nos joelhos até ver a nossa própria carne e não conheço ninguém que tenha morrido de sepsis na adolescência. 
vencíamos por amor a enquistante vergonha de ter de ligar para um centro de pagers e dizer amo-te muito.

a conta da luz era mais baixa apesar de não haver LED nem electrodomésticos classe A porque a luz nascia das entranhas dos nossos rios e agora os rios não são nossos.

e na escola não precisávamos ainda dizer se éramos ricos ou pobres, não havia ensino vocacional que é como quem diz à medida do capital, nem havia ensino para prosseguir estudos que é como quem diz filho de quem pode.

era tudo mais à filme mas na vida real.

no tempo das lâmpadas incandescentes as moscas ainda morriam electrocutadas nos restaurantes e todos podiam entrar sem máscaras até num hospital.

nós tínhamos bolas e jogávamos com elas na rua enquanto vivíamos, ainda, nas  cidades que éramos, mas dentro delas. 
as nossas avós não recebiam cartas de despejo com o selo branco da troika, e nós recebíamos, no natal, uma prenda da empresa em vez de um assalto ao décimo terceiro mês. 
e no verão, ah, no verão, os filhos dos trabalhadores também iam conhecer o país em vez de fazer um estágio não pago para ter... currículo... não era preciso ter experiência antes do primeiro trabalho porque talvez nesse tempo as contradições não fossem ainda tão gritantes. talvez porque se gritasse ainda bem alto de cravo florido no punho cerrado. 

nós somos a primeira geração de filhos e filhas cuja vida será mais dura que a de suas mães e pais.
felizmente não é esse o sentido da nossa história e, por isso, não é preciso ter saudades de lâmpadas incandescentes.

 

quinta-feira, 20 de agosto de 2020

sem título

lavra docemente uma cova no meu peito
deita-te dentro em aconchego e lá
morre tranquilamente por favor. 

quarta-feira, 12 de agosto de 2020

vinte vinte

os dias estão a chegar em vagões cheios de gente esquálida
por vezes, na estação, duvido da data.

terça-feira, 14 de julho de 2020

segunda-feira, 25 de maio de 2020

quinta-feira, 21 de maio de 2020

sem título

não saberemos do sabor das nêsperas
enquanto não formos de novo crianças
e descalços treparmos a rugueza dos troncos
no fim da tarde
no início do verão.


quinta-feira, 7 de maio de 2020

sem título

nós viemos
e já ninguém sabe de onde
tu que sabes
tudo da minha vida
nem sabes se vim de caetobriga
ou de gwadybelas
e o pior
deixo-te uma pista

podes beber um café fora o fim do mundo
(já ninguém joga no ajax)
e há sempre
entre maio e setembro
caracóis.

diz quando chegares à esplanada
não queremos marmelada branca, obrigado.

domingo, 3 de maio de 2020

sem título

a verdade
a verdade é que olhamos uns para os outros
e isto é tudo
um grande centro
de um engano
fun
da
men
tal
desde a origem
ao fim dos apocalipses
a verdade
a verdade é que isto é tudo uma grande
incógnita filha da putice.

sábado, 2 de maio de 2020

sem título

o vento a bater as asas
e as árvores desde a sua casca a testemunhar
altos voos em concerto da sua plumagem extrema
um caminho à vista pelo álamo abaixo
e infinitos atalhos entre o canto secreto das dríades

que infinita sedução a do caminho mais curto
que não leva a lado nenhum
não há sítio para chegar
se não partimos de ítaca, o retorno é simplesmente poético
e ainda há tantas estrelas no ar
ainda há tantas velas para içar
um sextante perdido no mar
um albatroz que teima em voar
sem levantar voo do convés
não
o caminho não é curto para quem gosta de andar
para mim só a infinita lonjura do horizonte.


sexta-feira, 17 de abril de 2020

sem título

quando cheguei
o quarto já estava desarrumado
a sala estava quase
eu virei o resto
todo o pó de um arco-íris que nunca veio
já estava no chão
o relógio marcava meia-noite
meia-noite e umas quantas traças nocturnas de verão
que eu não trazia quando entrei
as teias tecidas no canto da cozinha
eram de aranhas que encontrei na despensa
depois de noites inteiras a procurar
e o sótão sem janelas
só tinha a limpidez de uma noite depois da chuva
alguma parte disto
será minha
uma herança de milhões
de genes
perdidos no atlântico
que ainda hoje andarão nas vagas à deriva
um caminho que o vento traçou em ondas
de breu
uma viagem cujo destino não vai a lado nenhum
ou então já lá estou
dorme
dorme
meu menino que a maezinha logo vem
foi lavar os coerinhos à fontinha de belém
e uma toca de cria de lobo ibérico sem escolha
à espera de predador que o valha
sendo comido a pouco e pouco
por animais sem paladar
estes são os dias em que tudo o que agradecemos é pouco
porque uma toca é uma concha onde mora mais alguém
e ainda bem
somos o vento na ponta do dedo molhado pela língua
o norte no céu depois de ver onde cai o sol
somos a espingarda que não dispara porque é um brinquedo que esculpimos em madeira
a noite e o beijo na testa
que no fim do dia espreita com a lua não importa se está nova
somos o princípio e o fim de nós todos porque só há todos com nós
e um dia quando sussurrar no ouvido de alguém
desarruma-me
estarei a mentir
porque desarrumado já estava desde o dia, a noite,
em que junto aos trópicos entrei no quarto pela primeira vez.


domingo, 5 de abril de 2020

sem título

riscaste de azul o meu coração
e ele foi por aí fora meteoro
cruzando o céu em estrela cadente
quando cair
à volta não restará mais do que o deserto
e no centro um meteorito

quarta-feira, 25 de março de 2020

sem título

escrevi-te um poema
deixei-o no mar
e quando vogavas as vagas
a tua proa cortou
os versos em dois

assim as ondas
depois da barra
os faroleiros
com estrelas nos olhos


te abraçaram
e ao longe
cantaram embriagados
uma canção de amor.

a vida e a morte da estrela polar

lá no berço mais antigo
onde se aprende o norte do universo
pelo cheiro das galáxias 
caminhamos a vereda íngreme da verdade
o sol põe-se o sol nasce
e nós juntamos o que pensamos hoje em cima
dos milhões que pensaram antes
e a nossa matéria
toma de si própria a consciência possível
no meio da tempestade
e do vento indecifrável das poeiras estelares
a maternidade de nós todos é uma estrela
e nós somos, até ver, na versão menos romântica estrelas mortas
a estrela polar morre no equador
porque escrevo no hemisfério norte
mas é no equador que nasce o cruzeiro
e a terra
acho que a terra também nasceu lá no sul
lá onde a vida não é um sucedâneo espanhol de chocolate
é cacau
onde a coca não é ina, é folha,
o nosso norte é o sul.

mas lá pelo sul também já espalharam norte.

sábado, 21 de março de 2020

sem título

parece um desperdício
tanta gente à espera do mar
tanto mar à espera da gente.

quinta-feira, 19 de março de 2020

amor em tempos de corona

hashtag fica em casa
apesar de a cristina dizer que só afecta chineses
a igreja universal fechou e agora na rua não se faz nada
aquele livro que lias na esplanada 
lês em casa em directo na internet
no canal com mais gente a ver
copo de vinho ou sumo de arando, tanto faz 
na internet parece igual
o pior é esta coisa de a natureza humana afinal não ser egoísta 
o contrário do que sempre te disseram os egoístas 
e estarmos todos mortinhos para viver de verdade
e isso fechado em casa é mais difícil 
que o gato não é um animal social 
que o cão é servil 
e o peixe morre antes do fim da quarentena 
pássaros em gaiolas nem pensar
já bastamos nós amarrados e de asas cortadas
a engolir calamidades públicas em estado de emergência
sem direito de resistência
que é o mais poético dos direitos
ah, mas o pior é mesmo essa nossa dupla hélice de programação 
que vai amar até ao fim do mundo
se há amor em filmes de mortos-vivos 
imaginem em realidades de vírus
corações a bater desalmadamente
gente descoroçoada por um desgosto virtual
há de tudo
e novos entusiasmos 
sem poder convidar ninguém para um copo de vinho 
a não ser em videoconferência 
e sexo só não sexo
mas há lá quem diga que não é verdade a sinapse louca 
e a embriaguez de quem bebeu saudades de quem nunca viu
um dia
quando tudo isto passar, todos os amores de internet,
ou quase todos, vão procurar o mesmo espaço e abraço,
uns deles marcarão segundo encontro.
outros não.
nenhum amou menos, nenhum amou mais.


domingo, 8 de março de 2020

sem título

bateu no meu coração a meia noite
uma orquestra de sinos tocou em todos os campanários
um requiem 
uma flor prestes a desprender-se da haste
ainda me lançou os braços 
os meus, caídos, 
deixaram-se ficar. 

quinta-feira, 5 de março de 2020

um brinde

dois shots de lua cheia
se chego a este balcão para falar da minha vida
tu ouves, pões a bebida
e bebes uma comigo.

segunda-feira, 2 de março de 2020

sem título

enquanto os gatos miam
furtam-nos a escuridão da noite
e as estrelas acendem-se-lhes nos olhos
cruzando ligeiras os becos ao fundo
gatos pardos estrelas verdes
por toda a cidade
e nós a desperdiçar lentamente
o veludo negro
enquanto dormimos.

quinta-feira, 27 de fevereiro de 2020

sem título

temos à vista as raízes
e a verticalidade exige que se afundem
na terra nem sempre macia
furando o musgo e rasgando o substrato
de pedra

o vento agita o ligeiro arbusto
da árvore apenas as folhas
mas há sempre quem venha com as máquinas
o madeireiro capaz de arrancar a mais antiga sequóia
quanto mais a mim.

terça-feira, 18 de fevereiro de 2020

conversa de café

é um sinal dos tempos
que a todo o tempo se repita
que no passado é que era bom
que no meu tempo não era assim
disse-o meu bisavô
ai que a juventude está perdida
dirão os meus bisnetos
que a seu tempo que está perdida a juventude

só na terra plana há becos sem saída.

o sinal dos tempos
é vermelho.

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2020

sem título

o mar pensa-me as feridas
do casco onde as cracas descansam
e um limo universal pende lento
mas é o mesmo mar que as abre.

quinta-feira, 30 de janeiro de 2020

de quando em quando

vem o raro sopro de planetas alinhados
daqueles que dizem que vai provocar um fim do mundo
e dás por ti tens dentro do peito dois corações em chamas
e estrelam-se-te pela pele magnésios e cobres de todas as cores
em constelações de fogos

e tu deixas-te ficar
p'ra sempre que é como devia ser
até não teres coração nenhum.

terça-feira, 28 de janeiro de 2020

sem título

se eu estivesse num restaurante
sentado ao lado da Cláudia R. Sampaio
quando chegasse o empregado de mesa 
eu diria 
quero o mesmo que aquela senhora. 

quarta-feira, 15 de janeiro de 2020

sábado, 11 de janeiro de 2020

mãos na mesa

a gente bem tenta
chegar de novo aonde de nunca partiu
mãos na mesa jogo limpo
nada na manga
e a gente atira-se pela primeira vez para o lago sem saber que está congelado
e fica o nosso coração a bater muito pouco, ténue percussão sob o gelo sobre o que os outros patinam
e depois é preciso todo aquele tempo 
para que se rompam as leis da termodinâmica só com a força do corpo humano
o tempo para que um coração em hipotermia bata vezes suficientes para ser capaz de fundir um lago de gelo.