quarta-feira, 29 de novembro de 2017

sem título

em quantas paredes
de quantas casas
pintaste o teu nome com o sangue de quem lá mora
em quantas muralhas
abriste a fenda da derrota
quantos milhares de gotas de chuva
morreram às tuas mãos
por teres a garganta seca
por ires por essa noite afora
na treva unida e límpida
de archote aceso ao vento
ofegante e ligeiro com os pés descalços
pelo ladrilho molhado
como quem grita ao mundo
que está aqui.

domingo, 26 de novembro de 2017

casa

regresso a casa pela porta dos fundos
para não dar pela chegada
que é como quem acaba por não dar pela saída
nem os cães ladram nem a caravana passa
e as labaredas do sossego descem pelas paredes
como um aconchego
que banalidade essa a da casa
do lar
onde miam todos os gatos que importam no mundo
e encaixam as almas nos corpos
para por fim meditarem as virtudes e os pecados de mãos dadas
caminhando pelo álamo da consciência
e seguirem sem deslizar para as bermas
em que rastejam os animais que vivem de solidão.



sábado, 25 de novembro de 2017

sem título

abre o guia completo para a solidão 
na página sobre multidão
se puderes, sê um pássaro
e voa sobre todos os animais 
mas vê uma floresta. 

quarta-feira, 22 de novembro de 2017

cifra

quero que morras depois de mim
sabendo o que se lerá no teu epitáfio
depois de beber-te do crânio nu o sangue vivo.

sem título

a flor efémera
sobre o solo
da memória persistente.

segunda-feira, 20 de novembro de 2017

a luz é um lugar sombrio

até passar a ombreira
das portas que ninguém quer abrir
                                                       principalmente eu
nunca pensei que o escuro tivesse um som tão duro
tão rombo
como terra se abatesse sobre o corpo
na ponta de uma pá
segura nas minhas próprias mãos

sempre necrófago devorei corações mortos
agora em recuperação
habituo-me a custo
a corações ressuscitados.

a luz habita a voz da escuridão

e vice-versa.

sábado, 18 de novembro de 2017

pensamento sobre o estado da arte

não me preocupa, do ponto de vista estético, que as combinações de palavras tristes, frases de auto-ajuda e inspiração, componham os livros mais vendidos do mercado como resultado de uma receita repetida ao expoente da loucura. 

preocupa-me do ponto de vista social. só uma sociedade carregada de frustrados, tristes, deprimidos e carentes pode ver inspiração em parasitismo. 

sim, quem usa as palavras para explorar a dor alheia, ou a carência alheia, em vez de o fazer para expressar o que sente, para expressar as coisas com aquela verdade que até assusta o próprio autor, está a parasitar as necessidades do outro e não a dar um pedaço ao mundo. está a tirar do mundo para si.

sexta-feira, 17 de novembro de 2017

sem título

sim podes regressar
apesar de não teres partido
esta é a última viagem
dos amantes perdidos
pode durar para sempre
nunca navegará duas vezes a mesma onda.

sem título

na floresta as sombras são mais pequenas no inverno

é mais solitária na multidão
a mão estendida do homem ao abandono

o dia espalha-se mais luminoso entre árvores despidas.

quinta-feira, 16 de novembro de 2017

sem título

aqui estamos sentados
à beira do planeta
não é azul

afinal

é transparente.

daqui vemos os mares
e os continentes
cumprindo historicamente
o desígnio de conter
e nós alados
jamais nos permitiríamos
correr atrás da nossa cauda
às voltas num astro redondo.

sábado, 4 de novembro de 2017

sem título

este poema não é sobre nós

quando a mão se nos estende
as polpas dos dedos são raízes para as galáxias
cabo que amarra ao ferro
no fundo do mar
iça do meio do peito
a alma segura
pelo estai dos desgraçados
que nunca desistem
de ser cais
da mais deserta embarcação.

quarta-feira, 1 de novembro de 2017

sem título

para onde vão os fantasmas
quando o amor se separa da carne
e o corpo exangue teima em não sucumbir.