quarta-feira, 25 de março de 2020

sem título

escrevi-te um poema
deixei-o no mar
e quando vogavas as vagas
a tua proa cortou
os versos em dois

assim as ondas
depois da barra
os faroleiros
com estrelas nos olhos


te abraçaram
e ao longe
cantaram embriagados
uma canção de amor.

a vida e a morte da estrela polar

lá no berço mais antigo
onde se aprende o norte do universo
pelo cheiro das galáxias 
caminhamos a vereda íngreme da verdade
o sol põe-se o sol nasce
e nós juntamos o que pensamos hoje em cima
dos milhões que pensaram antes
e a nossa matéria
toma de si própria a consciência possível
no meio da tempestade
e do vento indecifrável das poeiras estelares
a maternidade de nós todos é uma estrela
e nós somos, até ver, na versão menos romântica estrelas mortas
a estrela polar morre no equador
porque escrevo no hemisfério norte
mas é no equador que nasce o cruzeiro
e a terra
acho que a terra também nasceu lá no sul
lá onde a vida não é um sucedâneo espanhol de chocolate
é cacau
onde a coca não é ina, é folha,
o nosso norte é o sul.

mas lá pelo sul também já espalharam norte.

sábado, 21 de março de 2020

sem título

parece um desperdício
tanta gente à espera do mar
tanto mar à espera da gente.

quinta-feira, 19 de março de 2020

amor em tempos de corona

hashtag fica em casa
apesar de a cristina dizer que só afecta chineses
a igreja universal fechou e agora na rua não se faz nada
aquele livro que lias na esplanada 
lês em casa em directo na internet
no canal com mais gente a ver
copo de vinho ou sumo de arando, tanto faz 
na internet parece igual
o pior é esta coisa de a natureza humana afinal não ser egoísta 
o contrário do que sempre te disseram os egoístas 
e estarmos todos mortinhos para viver de verdade
e isso fechado em casa é mais difícil 
que o gato não é um animal social 
que o cão é servil 
e o peixe morre antes do fim da quarentena 
pássaros em gaiolas nem pensar
já bastamos nós amarrados e de asas cortadas
a engolir calamidades públicas em estado de emergência
sem direito de resistência
que é o mais poético dos direitos
ah, mas o pior é mesmo essa nossa dupla hélice de programação 
que vai amar até ao fim do mundo
se há amor em filmes de mortos-vivos 
imaginem em realidades de vírus
corações a bater desalmadamente
gente descoroçoada por um desgosto virtual
há de tudo
e novos entusiasmos 
sem poder convidar ninguém para um copo de vinho 
a não ser em videoconferência 
e sexo só não sexo
mas há lá quem diga que não é verdade a sinapse louca 
e a embriaguez de quem bebeu saudades de quem nunca viu
um dia
quando tudo isto passar, todos os amores de internet,
ou quase todos, vão procurar o mesmo espaço e abraço,
uns deles marcarão segundo encontro.
outros não.
nenhum amou menos, nenhum amou mais.


domingo, 8 de março de 2020

sem título

bateu no meu coração a meia noite
uma orquestra de sinos tocou em todos os campanários
um requiem 
uma flor prestes a desprender-se da haste
ainda me lançou os braços 
os meus, caídos, 
deixaram-se ficar. 

quinta-feira, 5 de março de 2020

um brinde

dois shots de lua cheia
se chego a este balcão para falar da minha vida
tu ouves, pões a bebida
e bebes uma comigo.

segunda-feira, 2 de março de 2020

sem título

enquanto os gatos miam
furtam-nos a escuridão da noite
e as estrelas acendem-se-lhes nos olhos
cruzando ligeiras os becos ao fundo
gatos pardos estrelas verdes
por toda a cidade
e nós a desperdiçar lentamente
o veludo negro
enquanto dormimos.