terça-feira, 27 de dezembro de 2016

lembro-me do futuro

escrevi estes versos para os meus filhos
cujos nomes são desconhecidos
da maior parte
o tempo deixa-nos na memória apenas o passado que se acumula sob as finas camadas do presente
mas sabe seus nomes quem luta pelo futuro.

e nós, nós habitamos todo o tempo, e somos daquela porção da humanidade cuja memória guarda já o brilho da luz, o cheiro, e a história de amanhã. nós somos aqueles de quem as mãos, na verdade, são asas.

terça-feira, 6 de dezembro de 2016

quantidade e qualidade

gosto da imagem do copo cheio de água turva pelas argilas em suspensão. em repouso as argilas tendem a pousar, quando a gravidade vence finalmente a agitação e a entropia do sistema baixa ao ponto de a água se separar dos pequenos pedaços de mineral.
é o mesmo copo, é a mesma água, são as mesmas argilas. contudo, pela quantidade de energia que se introduz no sistema, ou que se lhe retira, a alteração é de qualidade. água turva sem depósito no fundo do copo, água límpida e cristalina com as argilas em camadas tranquilas e opacas depositadas.
assim somos nós, um recipiente de lama cuja absorvância depende da agitação.

sábado, 5 de novembro de 2016

sem título

da chuva
sabemos tudo até que
a terra a transpire
da vida
sabemos o que nos deixam as mortes
até que sábios e poetas o desmintam
de nós
nunca poderemos saber coisa alguma
até que o tremor nos tome
a chuva nos respire
e a vida nos ame.

quinta-feira, 20 de outubro de 2016

cordas

nas cordas tecer o tempo
vibrante de uma melodia
de madeira embebida
no verniz das décadas
poder nas mãos de abrir asas
de abrir almas
de encher casas
um vórtice
sem vazio
uma escala plena
de pétalas cadentes
que te cobrem o sorriso quando entras na sala
um vendaval
e tu um salgueiro.

terça-feira, 18 de outubro de 2016

komorebi

o ar vaporizado
no bosque
as árvores
sobre os fetos rentes
os rasgos de uma estrela incandescente
demasiado próxima
uma cortina
um sopro do nascente
ao ocaso.

segunda-feira, 17 de outubro de 2016

quinta-feira, 6 de outubro de 2016

quarta-feira, 28 de setembro de 2016

turno da noite

esse café da manhã à noite
a luz do sol só reflectida na lua
e um dia assim de repente 
a enchente
de luz e de gente
vigilante no sono 
ter uma arritmia na vida
uma hora preferida
para morrer
que resta estar disponível 

escreves a vida em código binário
acende apaga
e eu sou o teu turno da noite.



segunda-feira, 19 de setembro de 2016

Arrábida

abrir um oceano no meio de continentes
e fazer da terra serra
do que era fundo do mar
elevar no ar uma onda e fúria latentes
um penedo de infinitas conchas
que ousam levantar-se
verticais
e ter no extremo ocidente o mais belo cais
uma rocha um substrato um convento
convento, o retiro dos homens que querem estar mesmo ali
à mão de semear do deus que lhes sopra o vento
no rosto, na encosta sul, na face do azul
e do tempo
do tempo que esculpiu escarpas e algares
e povoou de folhas o solo que aceita filtrados os raios do sol
sobre o musgo
talvez do suão ainda nasçam aqueles medronhos
a semente mediterrânica de alecrim
e da pedra humedecida veja nascer o brilho
de onde vim
árabe
mas mais antigo que as regiões as religiões
um refúgio, mãe, uma concha nossa
a placenta.

quinta-feira, 15 de setembro de 2016

Bocage

triste o mundo de farpelas de alfaiate
feitas à medida da mentira.
vãs conquistas e falso louvor
com que se lavra a terra estéril d'alma débil.

frágil o brilho dos faróis fingidos
sumido o destino dos que por esse s'iluminam.

de mim não esperem mais que o breu legítimo
e a venal ausência
onde as estrelas se firmam.






quarta-feira, 7 de setembro de 2016

sem título

esse vendaval somos nós.

somos nós que nos levantamos do chão
e aos que estendem a mão
arrancamos as raízes mortas
destruímos as prisões
e sopramos futuro sobre o calor húmido



do passado.


sábado, 16 de julho de 2016

H.

serenas as fúrias com o tom da tua voz que recordo ainda dos telefones antigos,
não serás vítima da fraqueza de ninguém porque as fortalezas, como tu, só sucumbem ao abandono

quem nunca abandona, não é abandonado.

o teu fogo azul, a tua alma marinha não são refúgios para quem está perdido. são as maiores riquezas de quem sabe o caminho.

quinta-feira, 14 de julho de 2016

trigonometria

a liberdade mede-se em graus
como os ângulos
se o seno for menor que um
estas cativo da tua inclinação.

sem título

tinha na mesa servidas frias as asas mortas de um corvo que alavam um coração. o meu.

terça-feira, 21 de junho de 2016

sem título

talvez já não haja morangos. há cerejas, maçãs e laranjas era o que agora se podia ler na mesma placa de madeira erguida na beira da estrada. por perto, o sol só permitia uma pequena sombra junto ao balcão improvisado na lateral da camioneta. e as cerejas, algumas ao sol, reflectiam o vermelho da luz solar com fulgor. não consigo já distinguir na memória se alguém se preparava para trazer cerejas, maçãs ou laranjas a dois euros o quilo, mas espero que sim, para que não desistam de anunciar fruta à beira das estradas e para que nos dias de verão a minha irmã possa sempre parar o carro para provar uma melancia fresca, mesmo que a não compre.

foi longo o vendaval do inverno. mas tudo tem o seu fim, ainda que temporário. a superfície do mondego não estava agitada e a água podia assim reflectir sem perturbação o verde das margens vivas, o cinza da livraria litológica e o azul do céu. se é bonito o quadro que a a luz reflectida e a paisagem pintam no encaixe do mondego algures entre os distritos duros de coimbra e viseu, é porque ainda não vimos o que faz a luz refractada pelo rio adentro. aqueles raios oblíquos do sol que perfuram com novo ângulo a superfície e vão iluminar os olhos sempre abertos dos peixes que aproveitam a corrente laminar para descansar. os que lutaram, claro, porque dos outros não reza a história. e as algas, que na torrente do inverno mal se prendem na rocha do leito, agora ondulam como uma seara verde no vento suave. são assim mesmo as coisas: o mesmo rio que arrancou pedras e agitou o próprio coração de quem o viu, é o que agora permite que o espelho à sua superfície reflicta almas tranquilas. 

o mesmo rio que levantava pedras, areias, siltes e argilas, não tem agora força para turvar a água com a mais pequena partícula. voltará a ter, é certo. mas só quando os finos assentam, podemos ver através da água. desta vez, parece que me terei deixado levar pela simplicidade das impressões. e eis que, assente a poeira, também se desfazem ilusões: não há meias palavras para dizer a verdade.

terça-feira, 24 de maio de 2016

segunda-feira, 16 de maio de 2016

lugar

quando volto aos meus lugares
entendo novamente aquela distância imensa
entre nós e o horizonte
como entre solidão e estar sozinho.
quando regresso aos meus lugares
sinto na polpa dos dedos o toque da pele
indígena
que nos reveste

por dentro.

quarta-feira, 13 de abril de 2016

Porto, Abril de 2016



cidades-lágrimas são calor no meio das pedras.


as gotas da chuva reflectem, cada uma, todo o mundo ao ser redor e, enquanto a gravidade as vence, reflectem na superfície a paisagem cada vez mais pequena que, ainda assim, partilha sempre metade de cada uma com o céu de onde vieram.


até que na terra se desfaçam em mil outras gotas ou se infiltrem pelos espaços vazios entre os grãos de areia, siltes ou argilas que convivem com a morte e a vida dos que jazem e dos que dos que jazem se alimentam. ou que, por vezes, na nossa pele salpiquem a temperatura das alturas a que pertenciam quando sucumbiram, por falta de agitação molecular que lhes permitisse vencê-la, à inexorável força da massa terrestre que as não deixa fugir.


no dorso do vento frio, que enche os espaços deixados pela baixa pressão, a memória dos teus lugares preferidos é o sangue do teu calor, da tua ilha, neste arquipélago onde, ao contrário dos geológicos, cada ilha faz o seu próprio vulcão.



Porto, Abril de 2016

terça-feira, 23 de fevereiro de 2016

sem título

para serem expulsas do paraíso
que mal terão feito as aves
e não me digam que comeram uma maçã
por ouvir sibilar uma serpente

domingo, 14 de fevereiro de 2016

sem título

há morangos, maçãs e laranjas. era o que podia ler-se na tabuleta de madeira à beira da estrada. a poucos metros à frente, as mãos engelhadas do frio e curtidas pelo vento salgado dos anos contavam algumas moedas para fazer um troco. o cliente satisfeito já levava um belo saco de laranjas e sorria. claro que não faço ideia se foi assim a estória, mas é o que dá gosto depreender pela tabuleta de madeira.

sei que as margens do Mondego foram vencidas pelo volume e pela torrente e que acabaram por ceder. ao viajar por entre o vale da livraria, o rio serpenteava em sentido contrário e nunca o tinha visto tão alto ou tão revolto. um rio revolto é sempre inspirador. e aqueles peixes que pensavam sossegar e permitir que o frio lhes petrificasse as preocupações eis que dão por si a ter de sair da letargia do gelo e a esbracejar para vencer os remoinhos. alguns cansaram-se e sucumbiram. outros não. já dos que ficaram a ver, como a nêspera, não reza a história. também não tenho a certeza de que tenha sido exactamente assim, mas é o que dá ter este gosto pelo impressionismo: uma pessoa vê um rio revolto e fica com a impressão de que há lá sempre mais qualquer coisa. claro que se podia sempre dizer "prateado o céu plúmbeo, escondia a cor barrenta do rio que, agitado, o reflectia" e pronto. mas é também o desafio das impressões, ver para além delas.

é por isso que posso escrever "o teu beijo pousou leve no meu peito" e saber que a verdade escreve assim: "o meu coração pulsa o sangue da tua alma."

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2016

lógica

que deus algum nos negue a existência
é existirmos que a todos nega.

na vida não invertemos a ordem dos factores.

terça-feira, 2 de fevereiro de 2016

sem título


no inverno
as rochas voltam à placenta do musgo

a respiração vê-se ao longe
e nada reveste o coração.