terça-feira, 3 de fevereiro de 2015

no meu país

aqui no meu país só passa fome quem quer
que migalhas de ricos há espalhadas com fartura
no caixote do lixo da burguesia
que dá pelo nome de i pê ésse ésse
e não falta gente que atire restos aos pobres
como quem manda milho aos pombos
com a diferença que é mais nobre combater a solidão
que a ocupação de tempos livres com gente
para fazer da caridade um penduricalho mais barato que uma sessão de cabeleireiro
ou um passeio da avenida que é da liberdade de alguns
desde que tenham carro comprado após dois mil

no meu país as crianças só passam fome porque querem
ninguém lhes deu ordem de ir nascer na periferia
com tanto condomínio de luxo por aí devidamente licenciado
ou terem ido escolher vir ao mundo só com mãe
e sem pai isto só visto

no meu país os velhos só passam fome porque querem
porque toda a gente sabe que enquanto aqueles corações batem
há uma veia de empreendedorismo a latejar
e um banco pronto prontinho a financiar o arrojo dos septuagenários sem pensão

no meu país
diga-se a bem da verdade
só fica sem emprego quem quer
só vive na solidão quem quer

só morre no mar quem quis viver pescador e ousou ter fome em dia de temporal

só morre de neoplasia maligna quem quis ser mineiro e inspirar urânio 
como quem respira o ar do jardim do hotel de seis estrelas

no meu país só fica à porta do hospital quem quer
pode sempre entrar
nem que seja pela porta da morgue

no meu país só é despedido quem quer porque escolheu precisar de trabalhar
em vez de ter um banco ou pelo menos uma cadeia de hipermercados

no meu país só entrega casa ao banco quem quer
podia sempre comprar a pronto 

aqui neste país
só passa fome quem quer
enquanto diz merda quem pode.

2 comentários:

Maria disse...

Retrato de um país que um dia cheirou Liberdade e Democracia.
Que foi feliz durante quase dois anos.
Retrato verdadeiro, que me doi tanto...

Unknown disse...

Fantástico poema Miguel Tiago, beijinhos