segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

peça para uma criança que não morre

do canto da escuridão, uma criança surge correndo, com uma certa pressa como se fugisse de alguém. a cor do seu vestido quase não se distingue do fundo negro, mas vemos do seu rosto um olhar de quem corre fugindo mas sem medo. não a apanharão, pensará ela enquanto corre, percorrendo o vazio escuro de um palco. atravessa-o e mesmo junto a nós vem, algo apressada, plantar uma pequena flor vermelha num montinho de terra feito à pressa com a que estava à mão. erguida do chão a pequena flor, a criança, olha em redor, passa o pé de roda da terra para a calcar e dar segurança às ainda frágeis raízes, e deixamos rapidamente de a ver.

dois homens surgem no escuro, com uma luz forte a iluminar-lhes o caminho. espingarda às costas, olham a flor, entreolham-se pouco tempo porque, como para autómatos, a existência do outro é um facto estranho, ao qual toda a importância dada é demasiada. já muito perto da flor, apontam-lhe as espingardas. um deles, ante a resistência inusitada da flor à voz de prisão e de joelhos no chão, mãos na cabeça, arranca-a do chão sem piedade, tira-lhe duas pétalas para análise posterior em laboratório e deixa abandonado o cadáver que ora jaz pelo monte de terra desfeito.

tudo é escuridão. os homens diluem-se nela. uma fresta de luz rente ao chão vem do nascente e ouvem-se os passos mais apressados de uma criança. vem com o mesmo vestido, porém mais apressada, a respiração mais difícil, os passos mais trementes. nas mãos traz uma flor e desajeitada mas cuidadosa, volta ao mesmo local, arranja de novo a terra, ergue de novo a flor, olha em redor, calca a terra, some no escuro.

dois homens surgem destacando-se do escuro. como é possível que a flor tenha de novo surgido? talvez tenha deitado sementes, talvez sejam necessárias medidas mais duras, uma pulverização do terreno com herbicidas, uma praga de gafanhotos, uma vigilância constante, quem sabe mesmo videovigilância. tudo ideias que podem e devem discutir e tudo ideias que tentaram. a flor morreu e tornou a surgir pelas mãos de uma criança que, sob as câmaras de vigiância ou o olhar mais atento das espingardas, sabia sempre como ali a levantar do chão que parecia estéril.

estéril não era. e a flor tornava, por vezes apenas por alguns minutos, a erguer-se na escuridão procurando o sol de que vivia. ou chamando o sol que a fazia viver.

certo dia, os homens construíram toda uma igreja, com sacerdotes e templos. era muito importante que ninguém se aproximasse da flor que teimava em nascer. era muito importante não a querer ver, não a querer cheirar. anos a fio e gerações atrás de gerações viveram aterrorizadas pela simples ideia de que fosse possível cheirar uma flor.

e no entanto, era uma criança quem teimava em resistir às ordens.

adiante, no fundo do escuro, uma projecção mostra como a comunicação social se empenha em dizer que a flor é má. que aliás, todas as flores são más, não só as vermelhas. todas, de todas as cores, é preciso acabar com elas. e se porventura no teu quintal a chuva trouxer uma qualquer flor, nem que seja daninha e espontânea, é teu dever arrancá-la do chão sem piedade e incinerá-la até que não reste qualquer cor.

a polícia secreta foi ao local, trocou impressões, recolheu provas. a igreja mandou muitos homens estudar o fenómeno para saberem como escrever livros com as mentiras certas. a alta hierarquia da igreja sugeriu finalmente que se fizesse de betão o chão onde as flores teimavam em brotar. que nenhuma flor romperia o betão sólido. assim se fez.

durante anos o betão não fendeu.

a chuva, o oxigénio e o sol, todavia, que alimentam e fortalecem flores, venceram a batalha e o betão, anos depois, viu abrir-se-lhe uma pequeníssima fenda, imperceptível para as autoridades do estado e da igreja. o suficiente para que a criança, logo surgisse de novo com uma flor na mão e enchesse com um punhado de terra a fenda minúscula. a flor nasceu no meio do betão. a criança, contudo, não escapou e foi capturada poucos minutos depois.

com as espingardas apontadas, e os dedos acusatórios da igreja sancionando a morte como forma única de expiação, a criança ajoelhou, ergueu os olhos, com serenidade e confiança. nenhuma arma disparou, ninguém mais exigiu o que fosse. porque a criança era afinal todos nós e o seu rosto um espelho onde se reflectiam todos os rostos da plateia.

a flor, ao canto, permaneceu.

2 comentários:

Maria disse...

Que maravilha!
E por aqui começa a chover...

Sérgio Ribeiro disse...

Excelente!
Um dia, em 1978, em Bissau, no Hotel 24 de Setembro (antigo Quartel-General colonial) municiaram-nos de insecticida para nos defendermos de mosquitos e malária.
Foi tudo raso! Até as pequenas flores que havia à entrada do quarto.
Dias depois, uma florzita e a seguir outras, rebentaram do cimento.
Escrevi, então, um texto... de que perdi o rasto.
Obrigado, Miguel, por mo teres lembrado.